Instinto e razão na natureza humana, segundo Hume e Darwin
O interesse principal desta discussão é examinar alguns pontos de semelhança conceitual entre David Hume e Charles Darwin, no que toca a alguns temas da teoria do conhecimento, muito particularmente aquele que diz respeito à manifestação de certos poderes ou capacidades da mente humana para o conhecimento das regularidades naturais. Pode-se, desse modo, fazer uma discussão da filosofia de Hume integrada ao debate epistemológico contemporâneo ou, no mínimo, fazer uma leitura contemporânea da filosofia de Hume. Estamos, obviamente, pensando aqui na corrente denominada desde há alguns anos de epistemologia evolutiva, que tem declaradamente a obra de Darwin e o darwinismo, em um panorama mais amplo, como a sua maior fonte de inspiração.
Uma das propostas recentemente formuladas para explicar o conhecimento, que faz uso proveitoso do sucesso dos métodos investigativos empregados nas ciências particulares, é conhecida como epistemologia evolutiva,1 ou epistemologia da seleção natural, que se desenvolve a partir de uma consideração atenta de certas realizações importantes da ciência moderna, principalmente da teoria da evolução por seleção natural desenvolvida no século xix por Charles Darwin. E uma das principais feições desta epistemologia é a de considerar a seleção natural como um modelo de explicação fundamental para a compreensão do caráter e do relativo sucesso nas diversas tentativas de produzir conhecimento.
Muitos autores nas últimas décadas têm-se dedicado a pesquisar o conhecimento nos moldes oferecidos pela epistemologia evolutiva. Podemos mencionar aqui a obra de Karl Popper (1959, 1975), Donald Campbell (1974), Michael Ruse (1986, 1995) e David Hull (1975), como referências na pesquisa sobre o tema, o qual atingiu tal diversidade que podemos falar, sem receio, de versões diferentes do que seria a epistemologia evolutiva. De modo geral, uma caracterização bastante aceita seria aquela feita por Donald Campbell:
Uma epistemologia evolutiva será, no mínimo, uma epistemologia que toma a cognição como compatível com o estatuto do homem como um produto da evolução biológica e social [...]. Uma tal epistemologia tem sido negligenciada nas tradições filosóficas dominantes"
Charles Darwin, em sua obra A origem das espécies (1859), desenvolveu uma complexa estrutura argumentativa, combinando relatos de observações com hipóteses e suas conseqüências. Como ele mesmo afirmou em sua conclusão, "todo este volume é um longo argumento" (Darwin, 1952 [1859], p. 230), cuja intenção é convencer a comunidade intelectual de seu tempo de duas concepções fundamentais da história da vida.
As duas concepções que Darwin pretendeu provar em seu livro são, primeiro, a de que as diversas espécies atuais descendem de umas poucas outras espécies que existiam no passado, ou seja, de que as espécies podem evoluir, dando origem a novas espécies distintas. E segundo, que a explicação para este fenômeno é o mecanismo de reprodução com variação e sobrevivência do mais adaptado, chamado por ele e pela posteridade de seleção natural (cf. Gould, 1999).
Como resultado dos processos de reprodução dos seres vivos, deve haver competição por alimento, espaço e outros recursos. Nessa competição, qualquer pequena variação favorável representa uma melhor adaptação, e uma melhor chance de perpetuação do ser vivo. Darwin foi original ao compreender que o princípio de luta pela vida pode não ser somente uma força limitadora, mas também uma força mantenedora da estabilidade dos seres e reuniu suas conclusões em um longo argumento, que muitos autores comparam com uma "demonstração geométrica" (Flew, 1978, p. 8). Muito mais que isso, Darwin entendeu que o processo de crescente variedade e imensa diversidade observada no mundo natural pode ter o próprio princípio de seleção como sua causa. Ele tentou reunir o maior número de dados de que foi capaz, incluindo informações sobre o registro geológico da Terra, e dar a esses dados uma explicação compatível com sua hipótese fundada na seleção natural.
O que se pode tirar como conclusão, entre outras coisas, é que, enquanto historiador natural, Darwin mantém idéias epistemológicas da tradição corrente em sua época, dentre as quais não se encontrava o naturalismo epistemológico de Hume. O pensamento de Hume é nitidamente uma reação à corrente tradicional que considerava a razão especulativa como o principal elemento na produção do conhecimento. A teoria do hábito como formador das crenças causais não tinha sido reconhecida, de maneira ampla, pela comunidade intelectual de que Darwin fazia parte,2 muito embora se possa conjeturar que o autor de A origem das espécies seria simpático à interpretação naturalista que se tem feito mais atualmente da teoria humeana do conhecimento – sobretudo a respeito do conhecimento basear-se em princípios naturais.
Independentemente do que se possa conjeturar, diversos estudiosos utilizaram a pesquisa de Darwin como um panorama conceitual a partir do qual entender a teoria do conhecimento, em sua relação com a seleção natural. O lugar do homem no mundo natural, tal como Darwin pretendia vê-lo, foi, assim, o ponto de partida declarado de muitas das atualmente denominadas epistemologias evolutivas, ou da seleção natural. Fora isso, a interpretação exclusivamente biológica da seleção natural, frente a uma mais ampla interpretação cosmológica, ainda é um ponto de controvérsia. Parece que o próprio Darwin não pretendia ser tão rígido a esse respeito, visto que não nega expressamente, em nenhum momento, a possibilidade de se aplicar a seleção natural a outros domínios. Pelo contrário, é possível que Darwin entrevisse a aplicabilidade do modelo de seleção natural para a explicação de questões fora do assunto das espécies vivas.
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