As teorias de Lamarck e Darwin nos livros didáticos de Biologia no Brasil
A teoria da evolução orgânica do ponto de vista da sua transposição didática, isto é, a transformação do "saber dos sábios", em seu locus de produção, em saber pronto para ser ensinado em contexto escolar (CHEVALLARD, 1985), constitui um dos temas mais controversos da Biologia. De fato, o conceito de evolução mostra-se permeado por obstáculos epistemológicos, de fundo ideológico, filosófico e teológico (BACHELARD, 1996), o que torna sua abordagem em contexto de sala de aula particularmente difícil, tanto no ensino, por parte dos professores, quanto na aprendizagem, por parte dos estudantes. Deve-se enfatizar que a compreensão dos processos evolutivos tem um papel central na conceitualização de todos os temas da Biologia (ALMEIDA, 2007).
Por outro lado, é frequente, nos livros didáticos de Biologia adotados no Brasil, a abordagem do tema como concluído, desprovido de contextualização histórica para a compreensão, por parte dos alunos, de como os conceitos foram desenvolvidos ao longo do tempo.
Jean Baptiste Antoine de Monet de Lamarck (1744-1829) desenvolveu a sua teoria transformista em diversas obras ao longo do tempo, entre as quais: Recherches sur l'organisation des corps vivants (1800); Philosophie zoologique (1809); Histoire naturelle des animaux sans vertèbres (1815), além de palestras e discursos, tais como: Discours d'overture: An VIII (1800), An IX (1801), An X (1802) e An XI (1803) (MARTINS, 1997).
A sua teoria foi desenvolvida numa das épocas mais revolucionárias da história da humanidade, tanto em termos políticos quanto intelectuais: a época da Revolução Francesa. Esse contexto muito provavelmente contribuiu para a ousadia de suas conjecturas (ALMEIDA, 2007; ALMEIDA; DA ROCHA FALCÃO, 2005).
Embora o objetivo central de Lamarck não fosse a evolução orgânica e nem tampouco a origem das espécies, a sua teoria é considerada, pelos historiadores da Biologia, como a primeira explicação sistemática da evolução dos seres vivos. Ele pode ser considerado o fundador do transformismo (CORSI, 1994).
Segundo Martins (1998), a ideia da "progressão" das espécies começou a aparecer nas diferentes obras de Lamarck, a partir de 1800. De acordo com essa ideia, para que ocorresse a variação das espécies, haveria a necessidade de mudanças nas circunstâncias a que os animais estavam expostos durante um período de tempo considerável. Todo esse processo seria regido pelas quatro leis: 1) A tendência para o aumento da complexidade: A vida, pelas suas próprias forças, tende continuamente a aumentar o volume de todo o corpo que a possui, e a estender as dimensões de suas partes, até um limite que lhe é próprio. Esta lei indica que existe um aumento progressivo da complexidade e aperfeiçoamento. Lamarck acreditava na existência de um poder inerente à vida, dotado de uma tendência para o aumento da complexidade. Ele procurou fundamentar esta lei com dois tipos de fatos: um observável e outro não. O fato observável era uma comparação feita entre o estado de um animal em sua origem com o que se encontrava no fim da sua vida, e o não observável, era uma relação existente entre o aumento da complexidade na escala animal, dos invertebrados mais simples ao homem, e o aumento das faculdades dos corpos vivos na evolução histórica das espécies; 2) O surgimento de órgãos em função de necessidades que se fazem sentir e que se mantêm: a produção de um novo órgão em um corpo animal resulta de uma nova necessidade que surgiu e que continua a se fazer sentir e de um novo movimento que essa necessidade faz nascer e mantém. Isto era bem mais difícil de conceber do que o desenvolvimento de um órgão que já existe. Esta mesma ideia apareceu em diversas de suas publicações, ora com o status de lei, ora como proposição, ora como uma "consideração importante"; 3) O desenvolvimento ou atrofia de órgãos como função do seu emprego: o desenvolvimento dos órgãos e sua força de ação estão em relação direta com o emprego desses órgãos. Esta seria a famosa "lei do uso e desuso", que teve a sua formulação mais completa no seu Discours d´ouverture de 1806. Para exemplificar esta lei, entre outros exemplos, Lamarck citou o famoso exemplo do alongamento do pescoço das girafas, dando origem à má interpretação e descrições equivocadas da sua teoria; 4) A herança do adquirido: Tudo o que foi adquirido, traçado ou mudado na organização dos indivíduos, no decorrer de sua vida, é conservado pela geração e transmitido aos novos indivíduos que provêm daqueles que experimentaram essas mudanças. Desde que essas mudanças adquiridas sejam comuns aos dois sexos, ou àqueles que produziram esses novos indivíduos. Ao contrário da lei "do uso e desuso", que foi apresentada com um grande número de exemplos, Lamarck expôs esta lei rapidamente, não julgando que ela merecesse uma maior atenção. Por ironia, diversas vezes, a sua teoria tem sido reduzida nos termos desta formulação. Segundo Martins (1997), esta ideia não era original e vinha sendo aceita desde a antiguidade, tendo aparecido com Hipócrates e muitos naturalistas antes de Lamarck, até em Spencer e no próprio Darwin.
O contexto histórico das teorias de Lamarck e Darwin permite-nos compreender que os dois programas de pesquisa, nos seus campos de validade temporal, se caracterizaram por áreas teóricas comuns não descontínuas, de onde emergiram historicamente tradições de pesquisa diferentes. A ruptura teórica se deu entre o lamarckismo e o neodarwinismo, que está muito distante do darwinismo original de Darwin (ALMEIDA, 2007).
As atuais controvérsias da evolução há muito não incidem mais sobre o lamarckismo e o darwinismo. Se, por um lado, a evolução ascendeu à condição de paradigma teórico dominante da Biologia, por outro, restaram algumas questões relevantes e não esgotadas, como: o verdadeiro papel da seleção natural no processo evolutivo, a explicação do surgimento das espécies, o papel das teorias epigenéticas da evolução, o problema da mudança evolutiva sob uma perspectiva centrada na auto-organização, isto é, na Biologia evolutiva do desenvolvimento (Evo-Devo), a sociobiologia e o debate entre o neodarwinismo e o chamado "criacionismo científico". Isto nos permite concluir que, do ponto de vista lakatosiano, o programa de pesquisa neodarwinista entrou em crise há algumas décadas. Nessa ordem de ideias, embora as teorias do seu núcleo firme não tenham sido ainda questionadas, as teorias e hipóteses do seu cinturão protetor estão sob intenso questionamento empírico e teórico, sendo o gradualismo contínuo dos processos evolutivos, por exemplo, alvo de críticas dos defensores da perspectiva do equilíbrio pontuado .
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